sábado, 2 de agosto de 2014

George Berkeley, Tratado do Conhecimento Humano, 1710.

"Pois que são os objectos mencionados senão coisas percebidas pelos sentidos? E que percebemos nós além das nossas próprias ideias ou sensações? E não repugna admitir que alguma ou um conjunto de elas possa existir impercebido?"

Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro, 1973.

"...Perder o quê? Evidentemente, o tempo que passa e o que passa com ele. Que se pode perder além disso?"

"Tocámos no verdadeiro problema. O que vive em nós mesmo irrealizado precisa nestes tempos dúbios da rijeza da pedra. Orgulho autêntico. Recusa da conivência, do arranjo disfarçado. Dignidade. Elementos de que se faz a vagarosa teimosia dos sonhos. E então a partida está ganha. Pode perdê-la o escritor (por outras razões, aliás) mas o homem vence-a de certeza."

Soren Kierkegaard, Ou - Ou, Um Fragmento de Vida, 1844.

"Não sou um destes amigos de imagens; a moderna literatura tem criado em mim, em grande medida, uma aversão a imagens, visto que por vezes chegam a estender-se tanto que, de cada vez que encontro uma imagem, sou involuntariamente percorrido por um temor, o de que o verdadeiro propósito dessas imagens seja ocultar uma obscuridade do pensamento."

"MARCO AURÉLIO ANTONINO: "Está na tua mão reviver. Vê de novo as coisas como as viste já, e isso é reviver."

"Cada um dos momentos de vida não tem de ter mais significação para um indivíduo do que poder esquecê-lo no instante em que se queira; cada um dos momentos singulares de vida tem, por outro lado, de ter tanta significação para um indivíduo que é possível lembrá-lo a cada instante."

quarta-feira, 2 de abril de 2014

É com grande prazer que tenho vivido momentos tão especiais com o Senhor Professor Miguel Mira! Eis um produto do nosso trabalho!
It is with great honor and pleasure that I work and play with great Miguel Mira! Here is a product of our work!




segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Re-iniciação, José Saramago, 1985.

porque tudo foge que não fujo
E começo, do princípio, a conjurar
O verbo já sabido e suspeitado.
Numa eira de brasas me sentaram,
Mas digo que são brumas. Negador,
O corpo me regressa, iniciado."

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

François Rabelais, Pantagruel, 1532.

(Carta de Gargântua a seu filho Pantagruel)

"Muito querido filho,
   Entre as dádivas, graças e prerrogativas com que Deus todo-poderoso, modelador soberano, dotou e ornamentou a humana natureza no seu começo, singular e excelente me parece a que lhe permite adquirir em estado mortal qualquer coisa como uma imortalidade, e no decurso de uma vida transitória perpetuar-se de nome e semente; o qual se faz com linhagem que de nós sai por matrimónio legítimo. Assim devolve, de algum modo, o que nos foi extorquido pelo pecado dos nossos primeiros pais a quem foi dito, por não terem obedecido ao mandamento de Deus Criador, que iriam morrer e por morte reduzir a nada este tão magnífico molde onde foi criado o homem. Todavia, com este meio de propagação seminal mantém-se nos filhos o que foi perdido nos pais, e nos netos o que definhou nos filhos; e assim, sempre, até à hora do juízo final, quando Jesus Cristo devolver a Deus Pai o seu reino de paz, livre de todo o perigo e contágio de pecado, porque há-de então acabar-se toda a geração e corrupção, e os elementos ficarão livres das suas transmutações contínuas, já que a paz tão desejada estará concluída e perfeita, e todas as coisas serão reduzidas ao seu fim e ao seu período.
    Não será, portanto, sem justa e equitativa causa que dou graças a Deus, meu Conservador, por me deixar ver que a minha encanecida antiguidade refloresce na tua juventude; quando a bel'prazer d'O que tudo rege e ordena a minha alma deixar esta habitação humana, não me encontrarei totalmente morto mas passado de um lugar a outro, já que em ti e por ti permaneço neste mundo com a minha imagem visível, como sempre fiz, a viver, a ver e a privar com gente honrada e amigos meus; e ainda que este meu falar nem sempre tenha sido isento de pecado - com ajuda e graça divinas, quero confessá-lo (porque todos pecamos e continuamente requeremos a Deus que nos apague os pecados) - foi todavia sem mancha.
   Por isso, tal como em ti permanece a imagem do meu corpo, se acaso as qualidades da alma não reluzissem de igual forma não serias tomado por guarda e tesouro da imortalidade do nosso nome; e quando tal visse pequeno seria o meu prazer, se consideramos que substituiria a menor porção de mim, que o corpo é, enquanto a alma, que é a melhor e através da qual o nosso nome se mantém abençoado entre os homens, seria degenerada e abastardada; não o digo por desconfiança na tua virtude, a qual me ficou anteriormente provada, mas para te encorajar com mais força e extrair dela melhor proveito. E o que te escrevo agora não será tanto para viveres desse virtuoso modo mas sentires alegria por viver e ter vivido assim, e te renovares em coragem necessária para o futuro.
   Para aperfeiçoares e consumares este propósito bem poderás lembrar-te de que não me poupei a nada e até ajuda te prestei, como se neste mundo nenhum outro tesouro eu tivesse além de ver-te uma vez na vida absoluto e perfeito, não só em virtude, honestidade e probidade mas em todo o saber literal e honesto, e depois da minha morte deixar-te como um espelho que me represente a mim, teu pai, e mesmo que o não faça de muito excelente forma, como realmente eu te desejo, pelo menos de intenção o faça bem.
   Embora o meu falecido pai, Grandebocarra de boa memória, tenha consagrado todo o seu esforço a fazer-me progredir com a maior perfeição e com saber político, e em labor e estudo eu correspondesse muito bem ou até ultrapassasse o seu desejo, como podes compreender nem sempre o tempo era tão propício e cómodo para as letras como agora é, nem tive a fartura de preceptores que tu tiveste.
   Ainda vivíamos num tempo tenebroso, ainda havia o cheiro da infelicidade e da calamidade dos Godos, que tinham causado a destruição de toda a boa literatura. No entanto, ainda no meu tempo a luz e a dignidade foram devolvidas às letras por divina complacência, e nisso vejo um melhoramento tal que eu próprio teria dificuldade em ser hoje acolhido numa primeira classe de pequenos escrevinhadores; eu, na idade viril reputado (e com razão) como o mais sábio do referido século. Não o digo por vã presunção, fosse embora louvável fazê-lo ao escrever-te - de acordo com autoridade que encontrarás em Marco Túlio no seu livro Da Velhice, e na sentença de Plutarco no livro intitulado Como Podemos Louvar-nos sem Vaidade -, mas para te dar um afecto da mais pura água. 
   Já se restabeleceram todas as disciplinas e restauraram as línguas: a grega, sem a qual é vergonha alguém dizer-se sábio; a hebraica, a caldeia, a latina; a imprensa, hoje corrente, tão elegante e correcta, que foi no seu tempo inventada por inspiração divina tal como a artilharia, em contraface, por sugestão diabólica. Todo o mundo se encheu de gente sábia, preceptores mui doutos, bibliotecas mui amplas, e em meu juízo nem no tempo de Platão, Cícero ou Papiniano houve a comodidade de estudo que hoje encontramos, já não havendo de ora avante que oferecer lugar nem companhia ao que não é bem polido pela oficina de Minerva. Mais doutos vejo agora os salteadores de estrada, os carrascos, os aventureiros, os palafreneiros, do que os doutores e os pregadores do meu tempo. O que dizer? Mulheres e raparigas aspiraram a este louvor e maná celeste de boa doutrina. De tal forma que eu próprio, na idade em que estou me vi obrigado a aprender as letras gregas, não porque as tivesse desprezado, como Catão, mas porque não tive o vagar de compreendê-las na minha tenra idade; e de bom grado me deleito a ler as Morais de Plutarco, os belos Diálogos de Platão, os Monumentos de Pausânias e as Antiguidades de Ateneu, esperando a hora em que aprouver a Deus, meu Criador, chamar-me e ordenar-me que saia desta terra.
   Por isto, meu filho, te incito a empregar a mocidade no bom proveito de estudos e virtudes. Estás em Paris e como preceptor tens Epistémão, podendo aquela doutrinar-te com vivas e vocais instruções, o outro com louváveis exemplos.
   Penso e quero que aprendas as línguas na perfeição: primeiro a grega, como diz Quimtiliano, em segundo lugar a latina e depois a hebraica por causa das Sagradas Escrituras, tal como a caldaica e a árabe; que formes o estilo com a grega, imitando Platão, e Cícero no que respeita à latina. Não haja história que não tenhas presente na memória, nisto devendo ajudar-te a cosmografia daqueles que a escreveram.
   Das artes liberais, geometria, aritmética e música, algum gosto te tinha dado eu quando eras pequeno entre os cinco e os seis anos de idade; prossegue com o resto e fica a saber da astronomia todas as regras; deixa porém de parte a astrologia divinatória e a arte de Lulio, pois abusos e frivolidades são.
   Do direito civil quero que saibas de cor os belos textos e os compares com a filosofia.
   E quanto ao saber dos factos da natureza, quero que te entregues a eles com afinco: não haja mar, nem ribeira, nem fonte de que não conheças os peixes; todos os pássaros do ar, tudo quanto é árvore, arbusto e moita da floresta, todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no ventre dos abismos, as pedrarias de todo o Oriente e do Sul, nada te seja desconhecido.
   Depois, volta a passar cuidadosamente em revista os livros dos médicos gregos, árabes e latinos, sem desprezar os talmudistas e dos cabalistas, e dissecando com frequência adquire um perfeito conhecimento desse outro mundo que o homem é. E começa, algumas horas por dia, a visitar as Sagradas Escrituras: primeiro o Novo Testamento e as Epístulas dos Apóstolos em grego, depois o Velho Testamento em hebraico.
   Em suma, que eu te veja um abismo de ciência, porque antes de seres homem e te fazeres grande terás de abandonar a tranquilidade e o repouso do estudo, aprender a cavalaria e as armas para me defenderes a casa e em todo o caso de assalto de malfeitores socorreres os nossos amigos.
   E dentro em breve quero ver-te avaliar quanto assimilaste, e melhor não poderás fazê-lo que tirando conclusões em público sobre todas as matérias, com todos e contra todos, e frequentando a gente letrada que tanto há em Paris como noutros lados.
   Todavia, porque o saber não entra em maldosa alma e, como diz o sábio Salomão, a ciência não consciente só é ruína da alma, convém-te servir, amar e temer a Deus, pôr nele todo o pensamento e toda a esperança, e com uma fé formada de caridade continuar-lhe fiel ao ponto de nunca seres posto de lado por causa do pecado. Tem por suspeitos os excessos do mundo. À vaidade não dês o coração, porque esta vida é transitória, embora permaneça eterna a palavra de Deus. Sê prestável a todos os teus próximos e ama-os como a ti mesmo. Venera os teus preceptores. Foge à companhia de pessoas com quem não desejes parecer-te, e as graças que Deus te deu não vás recebê-las em vão. E quando reconheceres que possuis todo o saber que além-montes se adquire, volta a mim para eu poder ver-te e dar-te a benção antes de morrer.
   Meu filho, que a paz e a graça de Nosso Senhor sejam contigo. Amen.
   Na Utopia, ao décimo sétimo dia do mês de Março.
                 o teu pai Gargântua."





quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Henry Miller, O Sorriso aos Pés da Escada, 1947.

o que nós somos - 'ninguém'! E ao mesmo tempo, 'toda a gente'. Não é a nós que eles aplaudem, mas a eles próprios. Meu velho, tenho de me ir embora, mas antes deixa-me dizer-te uma pequena coisa que aprendi há pouco... Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo de extraordinário. Mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah! eis o truque mais difícil de todos. Difícil, exactamente, porque não envolve esforço. Tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem pequeno, nem hábil nem desajeitado... estás a perceber? Fazes o que te vem à mão. De boa vontade, bien entendu. Porque nada há que não tenha a sua importância. Nada. Em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. Pequenos sorrisos de satisfação - e é tudo. Mas é justamente o próprio 'tudo'... mais do que alguém pode pedir. Fazendo o trabalhinho sujo, alivias as pessoas dos dos seus fardos. Isso torna-as felizes, mas a ti torna-te ainda mais feliz, compreendes? É claro que deves fazê-lo sem ostentação, por assim dizer. Nunca deves mostrar-lhes o prazer que te dá. Se te deixas apanhar, se te descobrem o segredo, estás perdido. Chamar-te-ão egoísta, faças por elas o que fizeres. Podes fazer tudo por elas - chegares mesmo a matar-te de trabalho - enquanto não suspeitarem que te estão a enriquecer dando-te uma alegria que nunca poderias dar a ti próprio."



Agustina Bessa-Luís, Jóia de Família, 2001.

 "A esperança é uma forma de sorriso. Nós dispensamos uma gratidão especial a quem nos faz rir, porque isso anuncia uma esperança. Os espectáculos de alegria, eróticos e lúdicos, dão às pessoas uma noção de que se está a seguir uma conduta primitiva, o sexo e o tempo que lhe é favorável, o lugar e a oportunidade. Por isso parecem não obedecer a um comportamento maduro, mas à concordância básica com os seres humanos com quem partilhamos uma ordem comum."





terça-feira, 22 de maio de 2012

Cantiga de João Roiz de Castel Branco, partindo-se. Luís da Silveira, Cancioneiro Geral, Sec. XVI.

Cantiga

Senhora, pois que folgais
com meu mal, não me mateis;
porque quanto alongais
minha vida, tanto mais
vossa vontade fareis.

E olhai, se m'acabardes,
que nunca me mais tereis,
inda que me desejeis,
para m'outra vez matardes.
Mas já sei o que cuidais,
e de mim o conheceis:
confiais
que, se de morto mandais
que torne, que m'achareis.

domingo, 22 de abril de 2012

F. Pessoa, A Mensagem, 1934.

"O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.
(...)
Triste de quem vive em casa,
Contente com seu lar,
Sem que um sonho, no erguer da asa,
Faça até mais rubra a brasa,
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz -
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser desconte é ser homem."

sexta-feira, 13 de abril de 2012

M. Heidegger, O Conceito da Experiência em Hegel, 1942.

"O que nos está restringido a uma vida natural é incapaz de ir por si mesmo para além da sua existência imediata; mas é compelido por um outro a ir para além dele, e este ser-arrancado-para-fora é a sua morte porém, a consciência é para si mesma o seu 'conceito' e, assim, é imediatamente o ir-para-além do limitado e, uma vez que este limitado lhe é próprio, é o ir para além de si mesma; com o singular, é-lhe posto simultaneamente o além como se estivesse simplesmente 'ao lado' do limitado, tal como no intuir espacial. A consciência sofre, portanto, por ela mesma, esta violência de dar cabo da satisfação limitada."

M. Heidegger, A Palavra de Nietzsche "Deus morreu", 1943.

"Talvez um dia, |...| pensemos a era do começo da consumação do niilismo ainda de um outro modo do que até agora. Talvez reconheçamos então que nem as perspectivas políticas, nem as económicas, nem as sociológicas, nem as técnicas e científicas, que nem sequer as perspectivas metafísicas e religiosas bastam para pensar aquilo que acontece nesta era mundial. Aquilo que ela dá a pensar ao pensar não é um qualquer sentido metafísico escondido nas profundezas, mas algo que está próximo: o que está mais próximo, aquilo que, porque é só isso, por isso já constantemente omitimos. Através deste omitir, realizamos constantemente, sem repararmos nisso, aquele matar no ser do ente. |...| Talvez já não nos escape agora de um modo tão precipitado aquilo que é dito no começo do texto comentado, que o homem louco "gritava incessantemente: - Procuro Deus! Procuro Deus!". 
    Em que medida é este homem louco? Ele está delirante."

M. Heidegger, A Palavra de Nietzsche "Deus morreu", 1943.

"O pensar só comecará quando tivermos experimentado que a razão, venerada desde há séculos, é a mais obstinada opositora do pensar."

domingo, 1 de abril de 2012

F. Nietzsche, Assim falou Zaratustra, 1885.

"Um dia, Zaratrustra, ao voltar do seu lugarejo na montanha onde permaneceu longos anos, encontrou um velho eremita na floresta que se lhe dirigiu nestes termos:
- Que vens tu procurar entre os adormecidos? Infeliz de ti, queres então regressar à terra? Queres então arrastar de novo o peso do teu corpo?
Zaratustra respondeu:
- Amo os homens.
O velho retorquiu:
- O homem é uma criatura demasiado imperfeita para meu gosto. Se lhes queres dar alguma coisa dá-lhes esmolas.
Zaratustra insistiu:
- Eu não dou esmolas, não sou suficientemente pobre para isso."

terça-feira, 27 de março de 2012

F. Nietzsche, A Origem da Tragédia, 1872.

com base neste conhecimento que temos de entender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco que se extravasa, de forma contínua e sempre renovada, num mundo apolíneo de imagens. Aquelas partes corais, com as quais a tragédia se encontra entretecida, são portanto de certa maneira o regaço materno de todo o chamado diálogo, isto é, de todo o mundo cénico, do drama propriamente dito. Em vários e sucessivos extravasamentos, este solo primordial da tragédia irradia aquela visão do drama: visão essa que é em absoluto um fenómeno onírico, logo de natureza épica, representando porém, por outro lado, enquanto objectivação de um estado dionisíaco, não a redenção olímpica na aprência mas, inversamente, a fragmentação do indivíduo e a unificação deste com o Ser primordial. Assim, o drama constitui a simbolização apolínea de formas dionisíacas de conhecimento e repercussão (...)"