sábado, 12 de outubro de 2024


 

Descrição do Projecto CD Álbum "VOZ DEBAIXO" - Candidatura Aprovada pela Sociedade Portuguesa de Autores - 2023


I
Sinopse:
Em dezembro de 2021, enquanto planeava os próximos projetos musicais, depois do Recital Popular III, convidei a Margarida Mestre para juntos recuperarmos a pesquisa em torno de uma performance vocal com acompanhamento de instrumento acústico em que é impossível distinguir se a voz "canta" ou "diz". Pensámos então na ideia de elencar o nosso trabalho em faixas que viriam a constituir um álbum para editar em CD, colocando em prática não só todo o work-in-progress que desenvolvemos até agora, bem como a prossecução do levantamento de novas sínteses, novos métodos e novas ideias. Na medida em que a nossa pesquisa é feita em plena invenção performativa, em tempo real, este CD tem cabimento dentro do género de jazz de vanguarda ou ainda, experimental.

Descrição:

Antes de conhecer a Margarida Mestre em 2015, a minha ligação à voz e à palavra num contexto de performance, como músico e compositor, era já caracterizada por um profundo interesse e tinha já gerado alguns frutos, que refiro a título de exemplo: a performance e direção musical em "Para Acabar", a partir de uma peça radiofónica de Antonin Artaud, apresentada 10 vezes ao longo de uma semana de Julho no espaço Maus Hábitos, Porto, em 2013; o vídeo que publiquei no youtube, em 2014, intitulado "Pirili", onde apresentava já a técnica de 'dobragem' das frequências vocais desenvolvida por mim, no meu contrabaixo. Resumindo: desde que em 2005 encetei colaborações com o teatro e dança contemporânea, o meu interesse pelas questões da voz humana e da palavra poética no contexto das artes performativas sempre foi muito vivo e apaixonado. Ao longo desse período, até hoje, sempre que foi pertinente, tive oportunidade de testar e desenvolver a minha técnica de dobragem das frequências vocais, muitas vezes atingindo o nível de 'afinação' em que esta acontece em tempo real, ou seja, o descobrir da frequência usada pela voz no meu contrabaixo acontece simultaneamente à 'entoação' da voz, como se fosse o contrabaixo a "dizer" aquelas palavras, afirmando-se o instrumento acústico como uma "voz" própria. (A técnica referida pode ser confirmada mais especificamente através da audição da faixa 2 "Aconteço-me de já instante"; também na faixa 7 "Perfection", bem como na faixa 10 "Ouço o banjo de um cego")1.

1 A técnica de dobragem das frequências da voz, que me tem suscitado o mais vivo interesse, é fundamentada por processos já iniciados por outros: como Hermeto Pascoal e os seus processos de cristalização musical, a que chamou "Som da Aura", por exemplo com a entoação do actor Yves Montand, - que terá constituído para mim um 'gatilho' da minha dedicação ao estudo da voz do ponto de vista instrumental; o álbum "Comme a La Radio" de Brigitte Fontaine, de 1969; o pianista Jason Moran e a sua Bandwagon na faixa "Ringing my bell", em 2003. Podemos também acrescentar a estas referências a obra de Fátima Miranda e de Laurie Anderson, que serão sempre fontes de inspiração. 

Tive oportunidade de estudar esta técnica e colocá-la em prática com artistas como Paula Só, Ana Ribeiro, Constança C. Homem, João Pedro Mamede, Américo Silva, Inês Pereira, Tiago Botto, Dina Félix da Costa, António Poppe, Eduardo Sérgio, Rodrigo Brandão, bem como com as vocalistas Viv Corringham (UK), Maria Luisa Capurso (ITA), e Elisabetta Lanfredini (ITA). 

Aquando da preparação do primeiro Recital Popular, em 2015, eu e a Margarida Mestre tivemos oportunidade de iniciar um trabalho de pesquisa, ou de 'invenção em pesquisa', baseado na interação entre a voz humana e um instrumento acústico de cordas, em que a 'palavra', designadamente a 'palavra poética', foi sempre a mediadora desta interação. Melhor dizendo, a 'palavra' foi sempre a mediadora da transgressão, preconizada por nós e pela nossa pesquisa, das fronteiras entre palavra e música. E esta pesquisa, continuada e prossecutiva, a dois ou a nível individual, foi conhecendo novos capítulos de síntese ao longo do tempo, principalmente por cada vez que unimos as nossas competências criativas para o Recital Popular. Esta parceria com a Margarida Mestre, que já conheceu outras experiências e outros encontros para além do Recital Popular, regeu- -se sempre pelos princípios da criatividade e originalidade, em que, por um lado, um novo objeto artístico (musical) é almejado, bem como, por outro lado, o 'levantamento' de novos processos de criação é levado a cabo. No final dos processos, esses 'levantamentos' acabam por identificar-se com o próprio objeto criado, elevando-o ao estatuto de objeto 'meta-poético', ou seja, objeto artístico (performativo) que revela no seu carácter essencial os próprios processos (a sua poética) através dos quais foi criado2.

2 "No Sound Is Innocent: AMM and the practice of self-invention. Meta-musical narratives. Essays.", Edwin Prévost, Ed. Copula, Reino Unido, 1995. Do ponto de vista ensaístico/teórico, foram determinantes as leituras que fiz ao longo de 2021, nomeadamente de "No Sound is Innocent" de Edwin Prévost - no que concerne às questões da improvisação e 'composição em tempo real', o género musical a que Prévost chama de "meta-música"; as leituras da obra "Orientations" de Pierre Boulez - no que diz respeito, especialmente, aos ensaios sobre composição para voz humana, forma, texto e música, processos de composição. 

Como se trata de uma meta-linguagem, uma linguagem artística que se desvela não só em si mesma perante a perceção, mas também desvela os seus próprios processos 'enformantes', a proposta do CD "Voz Debaixo" poderá conter também uma mensagem de carácter pedagógico. Certa vez, ao observar um teste da disciplina de educação musical realizado por uma criança do 5o ano, constatei um problema grave: a professora colocara no teste duas questões relacionadas uma com a outra: 1. Se uma pessoa quando canta utiliza as notas musicais - ao que a criança respondeu que sim; e 2. Se uma pessoa quando fala utiliza as notas musicais - ao que a criança respondeu também que sim. O problema grave, ao nível da pedagogia, e obstáculo monstruoso da formação de consciência e integridade, foi que a professora deu a resposta à segunda pergunta como errada, apesar do aluno, provavelmente instintivamente, ter respondido à questão com toda a honestidade e talvez com uma (cons)ciência superior à da professora. Em "Voz Debaixo", por nossa vez, não pensámos duas vezes em como responder à questão colocada por Pierre Boulez, não deixando de analisar aprofundadamente cada uma das suas nuances: "Is the poem to be sung, 'recited' or spoken?"3  

3 "Orientatios, Collected Writings", Pierre Boulez, Ed. Harvard University, Reino Unido, 1986. Capítulo "Sound, Word, Synthesis". 

Num plano já muito distante daquela professora, chegámos a um ponto de base em que tentámos demonstrar, com "Voz Debaixo", que talvez não exista grande diferença entre cantar, 'recitar' ou dizer. E acreditamos que esta constatação, por parte de quem ouvir este álbum, poderá realmente corresponder com a visão sonhadora de John Coltrane: "Acho que a música é um instrumento. Pode levar à criação de formas exemplares de pensamento que modifiquem a maneira de pensar das pessoas." 4 ...e por conseguinte, também a maneira de se expressarem e comunicarem umas com as outras.

4 "Free Jazz Black Power", Philippe Carles / Jean-Louis Comolli, Ed. A Regra do Jogo, Porto, 1976. 

Com a edição deste CD temos como objetivos a atingir: (1.) criar e apresentar nova música e também novos processos; (2.) dar continuidade aos processos e sínteses desenvolvidos por outros artistas no passado recente; (3.) a premência de instituir que utilizamos 'materiais' musicais para falar/dizer/recitar; (4.) a premência em restituir unidade expressiva à performance com música e palavra. 


"Parece não haver dúvida de que a música abre horizontes.
ouvi esse encanto de voz e cordas, e, que dizer? milagre."

Abel Neves - escritor, dramaturgo e poeta, autor do texto usado na faixa 10 "Ouço o Banjo

https://joaomadeira.bandcamp.com/track/ou-o-o-banjo

https://joaomadeira.bandcamp.com/album/voz-debaixo


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