sábado, 6 de junho de 2020

Dom Quixote de la Mancha II, Miguel de Cervantes, 1615.

"Dizem que no próprio original desta história se lê que depois de haver Cide Hamete escrito este capítulo, não o traduziu seu intérprete como ele o escrevera, que foi um modo de queixa que teve o mouro de si mesmo por haver tomado entre mãos uma história tão seca e tão limitada como esta de Dom Quixote, por parecer-lhe que sempre havia de falar dele e de Sancho, sem ousar estender-se a outras digressões e episódios mais graves e mais aprazíveis; e dizia que o ir sempre apegado ao entendimento, a mão e a pena a escreverem de um só tema e o falar pelas bocas de poucas pessoas era um trabalho incomportável, cujo fruto não redundava em proveito de seu autor, e que por fugir deste inconveniente usara na primeira parte do artifício de algumas novelas, como foram a do Curioso Impertinente e a do Capitão Cativo, que estão como separadas da história, posto que as demais que ali se contam sejam casos sucedidos ao mesmo Dom Quixote, que não podiam deixar de se escrever. Também pensou, como ele diz, que muitos, levados da atenção que pedem as façanhas de Dom Quixote, a não dariam às novelas, e passariam por elas ou com pressa ou com enfado, sem notarem a gala e artifício que em si contêm, o qual se mostrara bem a descoberto, quando por si sós, sem se arrimarem às loucuras nem às sandices de Sancho, saíssem à luz. E, assim, nesta segunda parte não quis ingerir novelas soltas nem postiças, mas alguns episódios que o parecessem, nascidos dos mesmos sucessos que a verdade oferece, e ainda estes limitadamente e sem mais palavras que as bastantes para os declarar; e pois que se contém  e encerra nos estreitos limites da narração, tendo habilidade, suficiência e entendimento para tratar do universo todo, pede se não despreze seu trabalho, e se lhe dêem louvores, não pelo que escreve, mas antes pelo que deixou de escrever."