sexta-feira, 13 de setembro de 2013

François Rabelais, Pantagruel, 1532.

(Carta de Gargântua a seu filho Pantagruel)

"Muito querido filho,
   Entre as dádivas, graças e prerrogativas com que Deus todo-poderoso, modelador soberano, dotou e ornamentou a humana natureza no seu começo, singular e excelente me parece a que lhe permite adquirir em estado mortal qualquer coisa como uma imortalidade, e no decurso de uma vida transitória perpetuar-se de nome e semente; o qual se faz com linhagem que de nós sai por matrimónio legítimo. Assim devolve, de algum modo, o que nos foi extorquido pelo pecado dos nossos primeiros pais a quem foi dito, por não terem obedecido ao mandamento de Deus Criador, que iriam morrer e por morte reduzir a nada este tão magnífico molde onde foi criado o homem. Todavia, com este meio de propagação seminal mantém-se nos filhos o que foi perdido nos pais, e nos netos o que definhou nos filhos; e assim, sempre, até à hora do juízo final, quando Jesus Cristo devolver a Deus Pai o seu reino de paz, livre de todo o perigo e contágio de pecado, porque há-de então acabar-se toda a geração e corrupção, e os elementos ficarão livres das suas transmutações contínuas, já que a paz tão desejada estará concluída e perfeita, e todas as coisas serão reduzidas ao seu fim e ao seu período.
    Não será, portanto, sem justa e equitativa causa que dou graças a Deus, meu Conservador, por me deixar ver que a minha encanecida antiguidade refloresce na tua juventude; quando a bel'prazer d'O que tudo rege e ordena a minha alma deixar esta habitação humana, não me encontrarei totalmente morto mas passado de um lugar a outro, já que em ti e por ti permaneço neste mundo com a minha imagem visível, como sempre fiz, a viver, a ver e a privar com gente honrada e amigos meus; e ainda que este meu falar nem sempre tenha sido isento de pecado - com ajuda e graça divinas, quero confessá-lo (porque todos pecamos e continuamente requeremos a Deus que nos apague os pecados) - foi todavia sem mancha.
   Por isso, tal como em ti permanece a imagem do meu corpo, se acaso as qualidades da alma não reluzissem de igual forma não serias tomado por guarda e tesouro da imortalidade do nosso nome; e quando tal visse pequeno seria o meu prazer, se consideramos que substituiria a menor porção de mim, que o corpo é, enquanto a alma, que é a melhor e através da qual o nosso nome se mantém abençoado entre os homens, seria degenerada e abastardada; não o digo por desconfiança na tua virtude, a qual me ficou anteriormente provada, mas para te encorajar com mais força e extrair dela melhor proveito. E o que te escrevo agora não será tanto para viveres desse virtuoso modo mas sentires alegria por viver e ter vivido assim, e te renovares em coragem necessária para o futuro.
   Para aperfeiçoares e consumares este propósito bem poderás lembrar-te de que não me poupei a nada e até ajuda te prestei, como se neste mundo nenhum outro tesouro eu tivesse além de ver-te uma vez na vida absoluto e perfeito, não só em virtude, honestidade e probidade mas em todo o saber literal e honesto, e depois da minha morte deixar-te como um espelho que me represente a mim, teu pai, e mesmo que o não faça de muito excelente forma, como realmente eu te desejo, pelo menos de intenção o faça bem.
   Embora o meu falecido pai, Grandebocarra de boa memória, tenha consagrado todo o seu esforço a fazer-me progredir com a maior perfeição e com saber político, e em labor e estudo eu correspondesse muito bem ou até ultrapassasse o seu desejo, como podes compreender nem sempre o tempo era tão propício e cómodo para as letras como agora é, nem tive a fartura de preceptores que tu tiveste.
   Ainda vivíamos num tempo tenebroso, ainda havia o cheiro da infelicidade e da calamidade dos Godos, que tinham causado a destruição de toda a boa literatura. No entanto, ainda no meu tempo a luz e a dignidade foram devolvidas às letras por divina complacência, e nisso vejo um melhoramento tal que eu próprio teria dificuldade em ser hoje acolhido numa primeira classe de pequenos escrevinhadores; eu, na idade viril reputado (e com razão) como o mais sábio do referido século. Não o digo por vã presunção, fosse embora louvável fazê-lo ao escrever-te - de acordo com autoridade que encontrarás em Marco Túlio no seu livro Da Velhice, e na sentença de Plutarco no livro intitulado Como Podemos Louvar-nos sem Vaidade -, mas para te dar um afecto da mais pura água. 
   Já se restabeleceram todas as disciplinas e restauraram as línguas: a grega, sem a qual é vergonha alguém dizer-se sábio; a hebraica, a caldeia, a latina; a imprensa, hoje corrente, tão elegante e correcta, que foi no seu tempo inventada por inspiração divina tal como a artilharia, em contraface, por sugestão diabólica. Todo o mundo se encheu de gente sábia, preceptores mui doutos, bibliotecas mui amplas, e em meu juízo nem no tempo de Platão, Cícero ou Papiniano houve a comodidade de estudo que hoje encontramos, já não havendo de ora avante que oferecer lugar nem companhia ao que não é bem polido pela oficina de Minerva. Mais doutos vejo agora os salteadores de estrada, os carrascos, os aventureiros, os palafreneiros, do que os doutores e os pregadores do meu tempo. O que dizer? Mulheres e raparigas aspiraram a este louvor e maná celeste de boa doutrina. De tal forma que eu próprio, na idade em que estou me vi obrigado a aprender as letras gregas, não porque as tivesse desprezado, como Catão, mas porque não tive o vagar de compreendê-las na minha tenra idade; e de bom grado me deleito a ler as Morais de Plutarco, os belos Diálogos de Platão, os Monumentos de Pausânias e as Antiguidades de Ateneu, esperando a hora em que aprouver a Deus, meu Criador, chamar-me e ordenar-me que saia desta terra.
   Por isto, meu filho, te incito a empregar a mocidade no bom proveito de estudos e virtudes. Estás em Paris e como preceptor tens Epistémão, podendo aquela doutrinar-te com vivas e vocais instruções, o outro com louváveis exemplos.
   Penso e quero que aprendas as línguas na perfeição: primeiro a grega, como diz Quimtiliano, em segundo lugar a latina e depois a hebraica por causa das Sagradas Escrituras, tal como a caldaica e a árabe; que formes o estilo com a grega, imitando Platão, e Cícero no que respeita à latina. Não haja história que não tenhas presente na memória, nisto devendo ajudar-te a cosmografia daqueles que a escreveram.
   Das artes liberais, geometria, aritmética e música, algum gosto te tinha dado eu quando eras pequeno entre os cinco e os seis anos de idade; prossegue com o resto e fica a saber da astronomia todas as regras; deixa porém de parte a astrologia divinatória e a arte de Lulio, pois abusos e frivolidades são.
   Do direito civil quero que saibas de cor os belos textos e os compares com a filosofia.
   E quanto ao saber dos factos da natureza, quero que te entregues a eles com afinco: não haja mar, nem ribeira, nem fonte de que não conheças os peixes; todos os pássaros do ar, tudo quanto é árvore, arbusto e moita da floresta, todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no ventre dos abismos, as pedrarias de todo o Oriente e do Sul, nada te seja desconhecido.
   Depois, volta a passar cuidadosamente em revista os livros dos médicos gregos, árabes e latinos, sem desprezar os talmudistas e dos cabalistas, e dissecando com frequência adquire um perfeito conhecimento desse outro mundo que o homem é. E começa, algumas horas por dia, a visitar as Sagradas Escrituras: primeiro o Novo Testamento e as Epístulas dos Apóstolos em grego, depois o Velho Testamento em hebraico.
   Em suma, que eu te veja um abismo de ciência, porque antes de seres homem e te fazeres grande terás de abandonar a tranquilidade e o repouso do estudo, aprender a cavalaria e as armas para me defenderes a casa e em todo o caso de assalto de malfeitores socorreres os nossos amigos.
   E dentro em breve quero ver-te avaliar quanto assimilaste, e melhor não poderás fazê-lo que tirando conclusões em público sobre todas as matérias, com todos e contra todos, e frequentando a gente letrada que tanto há em Paris como noutros lados.
   Todavia, porque o saber não entra em maldosa alma e, como diz o sábio Salomão, a ciência não consciente só é ruína da alma, convém-te servir, amar e temer a Deus, pôr nele todo o pensamento e toda a esperança, e com uma fé formada de caridade continuar-lhe fiel ao ponto de nunca seres posto de lado por causa do pecado. Tem por suspeitos os excessos do mundo. À vaidade não dês o coração, porque esta vida é transitória, embora permaneça eterna a palavra de Deus. Sê prestável a todos os teus próximos e ama-os como a ti mesmo. Venera os teus preceptores. Foge à companhia de pessoas com quem não desejes parecer-te, e as graças que Deus te deu não vás recebê-las em vão. E quando reconheceres que possuis todo o saber que além-montes se adquire, volta a mim para eu poder ver-te e dar-te a benção antes de morrer.
   Meu filho, que a paz e a graça de Nosso Senhor sejam contigo. Amen.
   Na Utopia, ao décimo sétimo dia do mês de Março.
                 o teu pai Gargântua."