terça-feira, 22 de maio de 2012

Cantiga de João Roiz de Castel Branco, partindo-se. Luís da Silveira, Cancioneiro Geral, Sec. XVI.

Cantiga

Senhora, pois que folgais
com meu mal, não me mateis;
porque quanto alongais
minha vida, tanto mais
vossa vontade fareis.

E olhai, se m'acabardes,
que nunca me mais tereis,
inda que me desejeis,
para m'outra vez matardes.
Mas já sei o que cuidais,
e de mim o conheceis:
confiais
que, se de morto mandais
que torne, que m'achareis.

domingo, 22 de abril de 2012

F. Pessoa, A Mensagem, 1934.

"O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.
(...)
Triste de quem vive em casa,
Contente com seu lar,
Sem que um sonho, no erguer da asa,
Faça até mais rubra a brasa,
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz -
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser desconte é ser homem."

sexta-feira, 13 de abril de 2012

M. Heidegger, O Conceito da Experiência em Hegel, 1942.

"O que nos está restringido a uma vida natural é incapaz de ir por si mesmo para além da sua existência imediata; mas é compelido por um outro a ir para além dele, e este ser-arrancado-para-fora é a sua morte porém, a consciência é para si mesma o seu 'conceito' e, assim, é imediatamente o ir-para-além do limitado e, uma vez que este limitado lhe é próprio, é o ir para além de si mesma; com o singular, é-lhe posto simultaneamente o além como se estivesse simplesmente 'ao lado' do limitado, tal como no intuir espacial. A consciência sofre, portanto, por ela mesma, esta violência de dar cabo da satisfação limitada."

M. Heidegger, A Palavra de Nietzsche "Deus morreu", 1943.

"Talvez um dia, |...| pensemos a era do começo da consumação do niilismo ainda de um outro modo do que até agora. Talvez reconheçamos então que nem as perspectivas políticas, nem as económicas, nem as sociológicas, nem as técnicas e científicas, que nem sequer as perspectivas metafísicas e religiosas bastam para pensar aquilo que acontece nesta era mundial. Aquilo que ela dá a pensar ao pensar não é um qualquer sentido metafísico escondido nas profundezas, mas algo que está próximo: o que está mais próximo, aquilo que, porque é só isso, por isso já constantemente omitimos. Através deste omitir, realizamos constantemente, sem repararmos nisso, aquele matar no ser do ente. |...| Talvez já não nos escape agora de um modo tão precipitado aquilo que é dito no começo do texto comentado, que o homem louco "gritava incessantemente: - Procuro Deus! Procuro Deus!". 
    Em que medida é este homem louco? Ele está delirante."

M. Heidegger, A Palavra de Nietzsche "Deus morreu", 1943.

"O pensar só comecará quando tivermos experimentado que a razão, venerada desde há séculos, é a mais obstinada opositora do pensar."

domingo, 1 de abril de 2012

F. Nietzsche, Assim falou Zaratustra, 1885.

"Um dia, Zaratrustra, ao voltar do seu lugarejo na montanha onde permaneceu longos anos, encontrou um velho eremita na floresta que se lhe dirigiu nestes termos:
- Que vens tu procurar entre os adormecidos? Infeliz de ti, queres então regressar à terra? Queres então arrastar de novo o peso do teu corpo?
Zaratustra respondeu:
- Amo os homens.
O velho retorquiu:
- O homem é uma criatura demasiado imperfeita para meu gosto. Se lhes queres dar alguma coisa dá-lhes esmolas.
Zaratustra insistiu:
- Eu não dou esmolas, não sou suficientemente pobre para isso."

terça-feira, 27 de março de 2012

F. Nietzsche, A Origem da Tragédia, 1872.

com base neste conhecimento que temos de entender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco que se extravasa, de forma contínua e sempre renovada, num mundo apolíneo de imagens. Aquelas partes corais, com as quais a tragédia se encontra entretecida, são portanto de certa maneira o regaço materno de todo o chamado diálogo, isto é, de todo o mundo cénico, do drama propriamente dito. Em vários e sucessivos extravasamentos, este solo primordial da tragédia irradia aquela visão do drama: visão essa que é em absoluto um fenómeno onírico, logo de natureza épica, representando porém, por outro lado, enquanto objectivação de um estado dionisíaco, não a redenção olímpica na aprência mas, inversamente, a fragmentação do indivíduo e a unificação deste com o Ser primordial. Assim, o drama constitui a simbolização apolínea de formas dionisíacas de conhecimento e repercussão (...)"

Aristóteles, Poética, Século IV a.c..

"O mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os carácteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, imitação dos agentes."